Foto de arquivo pessoal, divulgada pelo Terra
O papo agora é chamar de guerreira qualquer pessoa que encara seus desafios diários para pagar suas contas, trabalhar, cuidar da família, encarar expedientes rígidos e se virar daqui e dali para ter um mínimo de dignidade. Ora, pois, não somos todos guerreiros, então?
Tá, nem todos encaramos as mesmas batalhas diárias, mas generalizar a terminologia é, antes de tudo, contrariar o dicionário. Diz o Aulete:
Guerreiro: 1 Ref. a guerra 2 Belicoso, beligerante
A vida não é uma guerra e viver, portanto, não é guerrear, é viver, simplesmente. Diz o ditado popular: “Cada qual tem sua cruz para carregar”, o que também é um exagero, mas que nos coloca na condição de trabalhadores, não de lutadores. Que vantagem se tem em viver brigando contra a própria vida e o que nós mesmos nos reservamos em obrigações e metas?
As mulheres têm sido as mais premiadas com este adjetivo. Desde tempos imemoriais elas são as mulas de carga da sociedade. Cuidam da casa, do marido – quando este não foge com a cachaça ou com a puta da esquina -, dos filhos e de equilibrar as finanças. Não satisfeita, saiu de casa para aumentar a renda, e solidificou, com ou sem carteira assinada, sua tripla jornada diária. Multifuncional, ainda arruma tempo para o cabeleireiro, a novela e o bate papo com as amigas. Só elas são capazes disso, já que seu cérebro está preparado para executar diversas funções simultaneamente, algo impensável para nós, bitolados homens.
Independentemente do gênero, a maior parte das funções diárias que executamos são impostas por nós mesmos, seja de olho numa promoção, nas férias na praia nordestina ou na TV de LED. E, como nada é de graça, “nem o pão, nem a cachaça, como cantou Zeca Baleiro, precisamos suar a camisa para adquirirmos o que aspiramos, a despeito de nossa preguiça indígena misturada com nossa inoperância portuguesa.
Mas eis que aparecem administradores que põem em nossos cérebros pouco usados que somos “vítimas do sistema”, “órfãos do capitalismo” e precisamos do “resgate histórico” para que a história se desculpe conosco por nos fazer trabalhar.
Aliás, nossa preguiça é tão amplamente disseminada culturalmente que chamamos o trabalho de batalha, guerra e outros adjetivos menos alvissareiros. Até diferenciamos trabalho de emprego, como se o primeiro fosse um castigo e o segundo uma maneira de ganhar a vida sem maior esforço.
E os preguiçosos profissionais deitam e rolam. Institucionalizando a lei do menor esforço, criam cotas, cargos comissionados, terceirização de funções públicas, taxas de sucesso... Mas eis que um brasileirinho bravo, sem cota ou correção diferenciada de suas avaliações vestibulares consegue aprovação na Universidade Federal de Goiás, curso de Geografia. Nada de mais se Kalil Assis Tavares não tivesse Síndrome de Down.
Nem o próprio Kalil, a despeito de sua invejável conquista, pode ser chamado de guerreiro, mas de um cidadão que ascende socialmente por seus méritos e investimentos de sua família.
E aí, o que me dizem os “guerreiros” negros, deficientes físicos, índios e que tais que vangloriam-se do sistema de cotas como sendo uma medida de “justiça social”, como se cada membro da sociedade que paga seus impostos, “guerreia” diariamente em busca do melhor para si e sua família e se esforça por um futuro melhor para si, para os seus e, consequentemente, pelo país – que um dia haverá de tornar-se uma pátria – fosse um algoz que merece ser usurpado de suas prerrogativas de igualdade?
©Marcos Pontes